terça-feira, 21 de abril de 2009

Fernão Capelo Gaivota

Richard Bach.

 

PRIMEIRA PARTE

 

Era manhã e o sol-nascente brilhava sobre as ondas de um mar calmo.

A dois quilómetros da costa, um barco de pesca  pairava sobre a água e as palavras Pequeno Almoço relampejaram no ar, até que um Bando de gaivotas apareceu  a disputar pedacinhos de comida. Era o começo de um dia movimentado.

Mas lá longe, para lá do barco e da costa, Fernão Capelo Gaivota terminava. A trinta metros de altura, baixou as suas patas com membranas, ergueu o bico e tentou a todo o custo, com a força das asas aguentar uma contorção difícil e dolorosa. Isso queria dizer que deveria voar devagar, e então abrandou até sentir o vento passar pelo seu corpo como um sussurro, até sentir o oceano por baixo de si. Franziu os olhos, em intensa concentração, susteve a respiração e forçou um… só mais… um… centímetro… de… curva. Então as penas ruflaram, ele desequilibrou-se e caiu.

Como sabem, as  gaivotas nunca hesitam, nunca se desequilibram. Desequilibrar-se no ar é para elas uma desgraça e uma desonra.

Mas  Fernão Capelo Gaivota não era um pássaro vulgar. Sem se atrapalhar, abriu de novo as asas naquela difícil curva, abrandou e desequilibrou-se outra vez.

A maior parte das gaivotas não se querem incomodar a aprender mais que os rudimentos do voo, como ir da costa à comida e voltar.

Para a maior parte das gaivotas, o que importa não é saber voar, mas comer. Para esta gaivota, no entanto, o importante não era comer, mas voar.

Mais que tudo, Fernão Capelo Gaivota adorava voar.

Como veio a descobrir, esta maneira de pensar não o fazia muito popular entre as outras aves. Até os próprios pais se sentiam desanimados ao verem que Fernão  passava os dias sozinho, a experimentar, fazendo centenas de voos rasos.

Não sabia porquê, mas por exemplo, quando voava sobre a água a uma altitude inferior ao comprimento das duas asas abertas, conseguia manter-se no ar mais tempo e com menos esforço. Os seus voos não acabavam com o habitual mergulhar de patas abertas no mar, mas com um poisar leve, de patas bem unidas ao corpo. Quando começou a poisar em pé sobre a praia e depois a medir o comprimento da aterragem, os pais ficaram deveras preocupados.

- Porquê? Fernão, Porquê? – perguntava-lhe a mãe. – Por que não podes ser como o resto do Bando? Por que não deixas os voos rasos para os pelicanos e para o albatroz?

            Por que não comes?

            Filho, és só penas e osso!

-         Não me importo de ser apenas ossos, mãe

Só quero saber aquilo que consigo fazer no ar, e o que não consigo, mais nada. Só quero saber.

-         Ouve lá Fernão – disse-lhe o pai com bondade.

-                     O Inverno aproxima-se. Haverá poucos barcos, e o peixe das superfícies  irá para zonas mais profundas. Essa história dos voos está  muito bem, mas sabes que não te podes alimentar disso. Se tens estado mesmo a estudar, então estuda a comida e a forma de a conseguir. Não te esqueças de que a razão por que voas é comer.

Fernão baixou a cabeça, obediente. Durante os dias seguintes tentou comportar-se como os outros;  tentou a sério, disputando com o resto do Bando a comida junto dos pontões e dos barcos de pesca, mergulhando para apanhar pedaços de peixe e pão. Mas não conseguiu.

«É inútil », pensou, deixando cair deliberadamente uma anchova, que lhe custara bastante apanhar, aos pés de uma velha gaivota que o perseguia. Poderia ter passado todo este tempo a aprender a voar.

E há tanto que aprender!

Não tardou muito que Fernão Capelo Gaivota voltasse a pairar no alto mar, feliz, a aprender. O tema era a velocidade, e com numa semana de prática aprendeu mais sobre a velocidade que a mais rápida gaivota.

A trezentos metros de altura, batendo as asas com toda a força que tinha, lançou-se num vertiginosos mergulho em direcção às ondas e aprendeu a razão por que as gaivotas não fazem mergulhos vertiginosos. Passados seis segundos já se movia a cem quilómetros à hora, velocidade que desequilibra a asa de qualquer uma, no esforço da subida.

Aconteceu o mesmo, vez após vez.

Cuidadoso como era, esforçando-se até ao limite, perdia o controlo a alta velocidade.

Subir a trezentos metros. Primeiro tudo em frente, depois empurrando o corpo em mergulho vertical. Mas, de cada vez, a asa esquerda virava para cima e ele rolava violentamente para a esquerda, depois tentava recuperar com a asa direita e então caía para a direita num desordenado e turbulento parafuso.

Não conseguia ser suficientemente cuidadoso naquele arranque. Dez vezes tentou, e dez vezes ultrapassando os cem quilómetros à hora, acabou numa agitada massa de penas, descontrolada, despenhando-se na água.

«A chave», pensou por fim, escorrendo água, «deve estar em manter as asas quietas a alta velocidade… batê-las até aos setenta e depois pará-las.»

A seiscentos metros de altura, tentou de novo, preparado para o mergulho, o bico espetado, as asas bem abertas e firmes a partir dos setenta quilómetros à hora. Precisou de uma força tremenda mas conseguiu. Em dez segundos passara os cento e trinta quilómetros à hora.

Fernão acabava de estabelecer  o recorde mundial de velocidade para gaivotas!

Mas a vitória foi de pouca dura. No momento em que começou a arrancar, no instante em que alterou o ângulo  das asas, caiu outra vez no mesmo erro terrível, e, a cento e trinta quilómetros horários, foi como se tivesse sido atingido por dinamite. o Fernão Capelo Gaivota explodiu a meia altura e estatelou-se num mar, duro como tijolos.

Quando voltou a si, já tinha escurecido havia muito, e flutuou ao luar sobre a superfície do oceano. As suas asas eram barras de chumbo despedaçado, mas o peso do fracasso era-lhe mais doloroso. Desejou, debilmente, que o peso fosse suficiente para o arrastar docemente até ao fundo, e acabar de uma vez.

À medida que se afundava lentamente na água, uma voz estranha e oca soou dentro de si.

Não adianta. Sou uma gaivota. A minha natureza limita-me. Se estivesse destinado a aprender tanto sobre o voo, teria mapas em lugar de miolos.

Se estivesse destinado a voar a alta velocidade, teria as asas curtas de um falcão e comeria ratos em vez de peixe. O meu pai tinha razão. Devo voara para junto do Bando e contentar-me com aquilo que sou, uma pobre e limitada gaivota.

A voz sumiu-se, e Fernão concordou. O lugar de uma gaivota à noite é a costa, e a partir desse momento prometeu a si mesmo ser uma gaivota normal. Assim, todos ficariam felizes.

            Afastou-se, exausto, das águas escuras e voou em direcção a terra, satisfeito com o que aprendera sobre voar mais facilmente a baixa altitude. «Mas não», pensou. «Fui feito como fui feito, sou aquilo que aprendi. Sou uma gaivota como outra qualquer e como qualquer uma voarei.»

E, assim, ergueu-se dolorosamente a trinta metros e bateu as asas ainda com mais força, apressando-se a chegar à costa.

Sentiu-se melhor depois de ter tomado a decisão de ser apenas mais uma do Bando. Não haveria daí em diante mais laços a prendê-lo à força que o levava a aprender, não haveria mais desafios nem fracassos. E era bom  deixar de pensar e voar pela escuridão, em direcção às luzes da praia.

Escuro! A voz estranha ecoou em alarme.

As gaivotas nunca voam no escuro.

Mas Fernão não ouvia.«É bonito», pensava ele.

«O luar e as luzinhas a brilharem na água, atirando pequenas centelhas à noite, e tudo tão calmo e tão parado…»

Desce! As gaivotas nunca voam no escuro!

Se estivesses destinado a voar no escuro, terias os olhos de um mocho! Terias mapas em vez de miolos! Terias as asas curtas de um falcão.

No meio da noite a trinta metros de altura, o Fernão Capelo Gaivota pestanejou. A dor e as resoluções desvaneceram-se.

Asas curtas. Asas curtas de um falcão«É essa a resposta! Como fui tolo!

Tudo o que preciso é uma pequena asa, tudo o que preciso é encolher as asas o mais que puder e voar só com as pontas. Asas curtas!»

Subiu a seiscentos metros sobre o mar negro e, sem pensar no fracasso ou na morte, apertou as asas contra o corpo, deixando apenas que as pontas cortassem o vento, como lâminas de punhais, e mergulhou na vertical. O vento era o rugido de um monstro acima da sua cabeça. Cem quilómetros à hora,  cento e trinta, cento e oitenta, e ainda mais depressa. A força das asas, agora que se movia à velocidade de duzentos quilómetros à hora, não chegava a ser tão forte como antes, a cem, e, com um leve curvar da ponta das asas salvou-se da queda e passou disparado sobre as ondas, como uma bala cinzenta de canhão sob a lua.

Cerrou os olhos para se proteger do vento e regozijou-se. «Duzentos quilómetros à hora! Se eu mergulhar de uma altura de mil e quinhentos metros em vez de seiscentos, qual será a velocidade…?»

As intenções de momentos antes foram esquecidas, varridas com o vento. No entanto, não sentia remorsos por não ter cumprido as promessas que fizera a si próprio. Tais promessas são só para as gaivotas que aceitam o vulgar. Quem conseguiu atingir a perfeição na aprendizagem não tem necessidade desse tipo de promessas.

Quando o sol começou a subir, Fernão Capelo Gaivota treinava outra vez. A uma distância de mil e quinhentos metros, os barcos de pesca eram pequenos pontos sobre o azul calmo da água, e o Bando do Pequeno-Almoço, uma ténue nuvem de átomos de poeira, movendo-se em círculo.

Estava vivo, trémulo de prazer, orgulhoso de ter dominado o medo. Então, sem cerimónia, uniu as asas anteriores, abriu as asas curtas colocando-as em ângulo, e mergulhou directamente em direcção ao mar. Quando passou os mil e duzentos metros, tinha atingido a velocidade máxima e o vento era um sólido muro de som contra o qual não se podia mover com mais rapidez. Voava agora directamente para baixo, a trezentos e vinte quilómetros por hora.

Engoliu em seco, consciente de que se abrisse as asas àquela velocidade se despedaçaria em milhões de pequenos pedaços de gaivota, Mas a velocidade era poder, e beleza pura.

Começou a desviar-se a trezentos metros, com as pontas das asas a vibrar contra o vento gigante, o barco e a multidão de gaivotas aproximando-se do seu caminho à velocidade de um meteoro. Não podia parar; nem sequer sabia ainda como iria virar àquela velocidade. A colisão seria a morte instantânea. Achou melhor fechar os olhos. Aconteceu nessa manhã, logo após o nascer do Sol, que Fernão Capelo Gaivota passou disparado por entre o meio do Bando do Pequrno-Almoço, a trezentos quilómetros à hora, de olhos fechados num tremendo rugido de vento e penas.

A Gaivota da Fortuna sorriu-lhe desta vez e ninguém saiu ferido.

Quando espetou o bico para o céu, ainda cortava o ar a duzentos e quarenta quilómetros. Quando, por fim reduziu para trinta e abriu de novo as asas, o barco era uma migalha na imensidão do mar, mil e duzentos metros abaixo.

O seu pensamento era vitorioso. Velocidade máxima! Uma gaivota a trezentos e vinte quilómetros por hora! Era um acontecimento, o momento mais importante na história do Bando, e, nesse momento, uma nova era se abriu para Fernão Capelo Gaivota. Voltando para a sua solitária zona de treinos, encolhendo as asas para um mergulho de dois mil e quatrocentos metros, preparou-se para aprender a virar.

Descobriu que com um pequeno movimento da ponta da asa conseguia uma curva larga e suave a grande velocidade. Contudo, antes de aprender isto, descobriu que se movesse mais de uma pena àquela velocidade, giraria como uma bala de espingarda… e Fernão for a  primeira gaivota da terra a fazer as primeiras acrobacias no ar.

Nesse dia não perdeu tempo em conversas com outras gaivotas, mas voou até depois do pôr do Sol. Descobriu o círculo em vertical, a volta lenta, a volta circular, o parafuso invertido, o salto de gaivota, o movimento em cata-vento.

Quando Fernão Capelo Gaivota se reuniu ao Bando, na praia, já era noite cerrada. Sentia-se tonto e terrivelmente cansado. Ainda assim, não resistiu a descer com o círculo em vertical, fazendo uma rotação à volta de si mesmo, antes de aterrar.

«Quando souberem deste acontecimento», pensou,  «ficarão doidos de alegria. Como vale a pena agora viver! Em vez de andar de um lado para o outro à procura de peixe junto dos barcos, temos uma razão para viver! Podemos sair da ignorância, podemos ser criaturas perfeitas, inteligentes e hábeis. Podemos ser livres! Podemos aprender a voar»

Os anos a vir brilhavam e prometiam.

As gaivotas estavam reunidas em conselho quando ele chegou, e, segundo parecia, já há algum tempo.

Na verdade estavam à espera dele.

-                     Fernão Capelo Gaivota! Apresente-se no Centro! – As palavras do Mais Velho soaram em tom criminosos. Ser chamado ao Centro era uma vergonha ou uma grande honra. Ser chamado ao Centro por honra era a forma de nomear os principais chefes das gaivotas. «Claro», pensou ele, «foi o Bando do Pequeno-Almoço; presenciaram o Acontecimento. Mas não quero honras. Não tenho vontade de ser chefe. Só quero partilhar o que descobrir, mostrar a todos os horizontes que se nos deparam.»

Avançou.

-         Fernão Capelo Gaivota – disse o Mais Velho.

-         Apresenta-te ao Centro por vergonha, à frente das gaivotas tuas semelhantes.

Foi como se lhe tivessem batido. Os joelhos falharam-lhe, as penas descaíram, sentiu um zumbido nos ouvidos. «Ser chamado ao Centro por vergonha? Impossível. O Acontecimento. Eles não compreenderam. Estão enganados, estão enganados!»

-         …pela sua desastrada irresponsabilidade – continuava a voz, em tom solene -, violando a dignidade e a tradição da família das Gaivotas…

Ser chamado ao Centro por vergonha queria dizer que seria banido da sociedade das gaivotas, condenado a uma vida solitária nos Penhascos Longínquos.

-… um dia, Fernão Capelo Gaivota, compreenderás que a irresponsabilidade não compensa. A vida é o desconhecido e o desconhecível. Só sabemos que somos postos neste mundo para comer e para nos mantermos vivos durante o máximo de tempo possível.

Uma gaivota nunca responde ao Conselho do Bando, mas a voz de Fernão fez-se ouvir.

-                     Irresponsabilidade? Meus irmãos! – gritou. Quem é mais responsável que uma gaivota que descobre e segue um desígnio elevado na vida? Há mil anos que lutamos por cabeças de peixe, mas agora temos uma razão para viver, para aprender, para descobrir, para sermos livres! Dêem-me uma oportunidade, deixem que vos mostre o que descobri…

O Bando mostrou-se irredutível.

-         A Irmandade foi quebrada – disseram as gaivotas, em uníssono, e, de comum acordo, taparam os ouvidos e viraram-lhe as costas.

Fernão Gaivota passou o resto dos seus dias sozinho, mas voou muito além dos Penhascos Longínquos. O seu único desgosto não era a solidão, mas o facto de as outras gaivotas se recusarem a aceitar a glória do voo que as esperava; recusavam-se a abrir os olhos e ver.

Cada dia aprendia mais. Aprendeu que, com um mergulho a grande velocidade podia encontrar o peixe raro e saboroso do oceano; já não precisava de barcos de pesca nem de pão duro para viver.

Aprendeu a dormir no ar, estabelecendo um percurso nocturno ao sabor do vento, cobrindo cento e cinquenta quilómetros desde o pôr do Sol até à aurora.

Com o mesmo autodomínio interior, voou através de nevoeiros densos, subindo para céus mais claros e resplandecentes… enquanto as outras gaivotas permaneciam em terra, conhecendo apenas neblinas e chuva. Aprendeu a acompanhar os ventos continentais e a ter para jantar insectos delicados.

O que ambicionara para todo o Bando, tinha agora só para si, aprendera a voar e não lamentava o preço que pagara por isso.

Fernão Gaivota descobriu que o tédio, o medo e a ira são razões por que a vida de uma gaivota é tão curta, e sem estas razões a perturbarem-lhe o pensamento, vivem de facto uma vida longa e feliz.

Vieram à noite e encontraram Fernão deslizando calmamente e sozinho pelo seu querido céu.

As duas gaivotas que surgiram junto dele eram puras como a luz das estrelas, e o seu brilho era leve e afável. Mas a coisa mais maravilhosa nelas era a perícia com que voavam, as pontas das asas movendo-se a centímetros das suas.

Sem uma palavra, Fernão submeteu-as ao teste, um teste a que nenhuma gaivota for a ainda submetida. Torceu as asas, abrandou para um quilómetro e meio por hora. As duas aves, resplandecentes, abrandaram também, colocando-se em posição. Sabiam voar devagar. Dobrou as asas e começou a mergulhar a duzentos e oitenta quilómetros à hora. Elas mergulharam com ele, num movimento harmonioso. Por fim, transformou a velocidade numa longa rotação vertical e descendente.

Elas acompanharam-no sorridentes.

            Voltou a planar e, passados momentos, falou:

-         Muito bem – disse ele. – Quem são vocês?

-         Pertencemos ao Bando, Fernão. Somos tuas irmãs.

As palavras saíram fortes e calmas.

-         viemos para te levar para mais alto, para te levar para casa.

-                     Casa, não tenho. Bando, também não. Sou um Banido. E agora estamos a sobrevoar a Grande Montanha do Vento. Não consigo elevar este velho corpo acima de algumas centenas de metros.

-                     Podes sim, Fernão. Tu aprendeste. Acabou uma aprendizagem e chegou a hora de começar outra.

Tal como acontecera durante toda a sua vida, o entendimento iluminou a mente de Fernão Gaivota. Tinham razão! Ele podia voar mais alto, e era tempo de regressar a casa.

Lançou um último olhar para o céu, para aquela maravilhosa terra prateada onde aprendera tanto.

-         Estou pronto – disse, por fim.

E Fernão Capelo Gaivota elevou-se com as suas companheiras brilhantes como estrelas, desaparecendo num perfeito céu escuro.

 

SEGUNDA PARTE

 

«Então isto é o paraíso», pensou, e teve de sorrir de si próprio. Não era lá muito respeitoso analisar o paraíso, no preciso momento em que se preparava para entrar nele.

À medida que se afastava da Terra, por cima das nuvens e bem junto às duas gaivotas brilhantes, verificou que o seu próprio corpo se tornava tão brilhante como o delas. Na verdade, era o mesmo jovem Fernão Gaivota que sempre existira por detrás dos seus olhos dourados, mas a forma exterior era diferente.

Era como o corpo  de uma gaivota, mas já voava muito melhor que o antigo alguma vez voara.

«Bem», pensou, «com metade do esforço consigo duplicar a velocidade e a eficiência dos meus melhores dias da Terra.»

As suas penas reluziam agora num branco-brilhante e as suas asas eram macias e perfeitas, como folhas de prata polida. Deliciado, começou a aprender a conhecê-las, a dar força àquelas novas asas. A trezentos e setenta quilómetros por hora sentiu que se aproximava da velocidade máxima que atingira em voo planado.

A quatrocentos e nove quilómetros pensou que voava à maior velocidade possível, e sentiu-se ligeiramente desiludido. Havia um limite para aquilo que o novo corpo conseguia fazer, e, embora fosse muito mais rápido do que antigamente, era ainda um limite que lhe exigiria esforço a ultrapassar.

«No paraíso», pensou, «não haverá limites.»

As nuvens romperam-se, as companheiras gritaram-lhe:

-         Feliz aterragem, Fernão! –

E desapareceram no ar.

Voava sobre o mar em direcção a uma costa agreste. Algumas gaivotas treinavam voos nas rochas. Mais para norte, na linha do horizonte, outras mais voavam. Novas paragens, novos pensamentos, novas interrogações. «Porquê tão poucas gaivotas? O paraíso deveria estar repleto de gaivotas. E por que razão fiquei tão cansado de repente? As gaivotas no paraíso, nunca devem cansar-se, nem sequer dormir.»

Onde ouvira aquilo? A lembrança da sua terra desvanecia-se. A Terra era um local onde aprendera muito, sem dúvida, mas os pormenores esbatiam-se – havia algo, como lutar pela comida e ser banido.

A dúzia de gaivotas que se encontravam junto à costa aproximou-se dele, sem uma palavra. Mas ele sentiu que era bem vindo e que aquele era o seu lar. For a um grande dia para ele, um dia cujo nascer do Sol ele já não recordava.

Preparou-se para aterrar na praia, batendo as asas de forma aparar a dois centímetros do chão, deixando-se cair depois, levemente na areia.

As outras gaivotas também aterravam, mas nenhuma delas moveu uma única pena.

Esvoaçaram ao vento com as asas brilhantes bem abertas e alteraram a curva das penas, de forma a pararem no preciso momento em que as suas patas tocaram no chão. Era um controlo soberbo, mas Fernão sentia-se demasiado cansado para tentar. Adormeceu ali mesmo na praia, sem ter pronunciado uma palavra.

Nos dias que se seguiram, Fernão verificou que havia tanto a aprender sobre o voo como houvera na vida que deixara para trás. Mas com uma diferença. Aqui havia gaivotas que pensavam como ele. Para cada uma delas, a coisa mais importante da vida era andar em frente atingir a perfeição naquilo que mais gostavam de fazer, que era voar. Eram aves magníficas todas elas, e passavam hora após hora, diariamente, a praticar o voo, experimentando técnicas aeronáuticas avançadas.

Durante muito tempo Fernão esqueceu-se do mundo onde vivia, aquele local onde o Bando vivia com os olhos completamente cerrados em relação ao prazer de voar, utilizando as asas como meros meios para atingir o fim de procurar e lutar pela comida. Mas, de vez em quando, e só por um momento lembrava-se.

Lembrou-se numa manhã que saíra com o instrutor, enquanto as outras gaivotas descansavam na praia, após uma sessão de voos de asa dobrada.

-         Onde estão os outros, Henrique? – perguntou, em silêncio, já familiarizado com a telepatia que as gaivotas utilizavam em vez de gritos e guinchos.

-         Por que somos tão poucos aqui? Lá do sítio de onde venho…

-         …milhares e milhares de gaivotas. Eu sei,- Henrique abanou a cabeça – A única resposta que encontro Fernão, é que tu és um pássaro num milhão. A maior parte de nós percorremos um longo caminho. Fomos de um mundo para o outro que era quase igual ao primeiro, sem nos preocuparmos com o destino, vivendo o momento. Fazes alguma ideia de quantas vidas teremos de viver antes de compreendermos que há coisas mais importantes do que comer, lutar ou disputar o poder do Bando? Mil vidas Fernão, dez mil vidas! E, depois, mais cem vidas até começarmos a aprender que a perfeição existe, e outras cem para constatar que o nosso objectivo na vida é conseguir a perfeição e pô-la em prática.

As mesmas regra se aplicam, agora, a nós: escolhemos o nosso mundo através do que aprendemos neste. Se não aprendermos nada, então o próximo mundo será igual a este, com as mesmas limitações e obstáculos a vencer. Abriu as asas e voltou-se para enfrentar o vento.

-         Mas tu, Fernão – continuou -, aprendeste tanto de uma só vez que não precisaste de viver mil vidas para chegares a esta.

Instantes depois encontravam-se de novo no ar, a praticar. As voltas circulares eram difíceis, pois na metade invertida Fernão tinha de pensar de cabeça para baixo, virando a curva da asa ao contrário, mas em perfeita harmonia com a do seu instrutor.

-         Tentemos outra vez – repetia Henrique. – Mais uma vez.

E finalmente disse:

-         Está bom.

E começaram a praticar piruetas exteriores.

Uma noite, as gaivotas que não praticavam voo nocturno encontravam-se juntas, na praia, a meditar. Fernão reuniu toda a sua coragem  e dirigiu-se à mais velha, que, dizia-se, em breve passaria para outro mundo.

-         Chiang… - começou nervoso.

A velha gaivota olhou-o com bondade.

-         Sim, meu filho?

Em vez de enfraquecido pela idade o Mais Velho era o mais forte; batia qualquer gaivota do Bando e aprendera práticas que as outras começavam naquele momento a aprender.

-         Chiang, este mundo não é o paraíso, pois nãp?

O Mais Velho sorriu ao luar.

-         Estás a aprender outra vez, Fernão Gaivota – respondeu.

-         Bem, mas que acontece depois? Para onde vamos? O paraíso não existe?

-         Não, Fernão, o paraíso não existe. O paraíso não é um lugar, nem um tempo.

O paraíso é ser-se perfeito.

Ficou calado durante alguns momentos.

-         Voas com muita velocidade, não voas?

-         Eu… eu gosto da velocidade – disse Fernão, surpreendido mas orgulhosos por o Mais Velho ter reparado,

-         Vais começar a aproximar-te do paraíso, Fernão, no momento em que atingires a velocidade perfeita. E isso não é voar a mil e quinhentos quilómetros por hora, nem a um milhão, nem à velocidade da luz. É que nenhum número é um limite e a perfeição não tem limites.

A velocidade perfeita, meu filho, é estar ali. Sem avisar, Chiang sumiu-se e apareceu junto à água, a uma distância de quinze metros, por um breve instante. Depois, voltou a desaparecer e pairou, por uma fracção de segundos, ao lado de Fernão.

-         É engraçado – disse.

Fernão ficou atordoado. Esqueceu-se de fazer as perguntas sobre o paraíso.

-         Como se faz isso? Qual a sensação? Até onde se pode ir?

-         Desde que o desejes, podes ir a qualquer lugar, em qualquer momento – disse o Mais Velho. – Fui a todos os lugares sempre que quis.

Olhou o mar.

-         É estranho. As gaivotas que desprezam a perfeição pelo prazer de voar, não vão a parte alguma, lentamente. Aquelas que trocam o prazer de voar pela perfeição, vão  a qualquer parte, instantaneamente. Lembra-te Fernão, o paraíso é…

-         Pode ensinar-me a voar assim?

Fernão Gaivota tremia de ansiedade por reconquistar o desconhecido.

-         Claro, desde que queiras aprender.

-         Quero, sim. Quando podemos começar?

-         Podemos começar agora, se tu quiseres.

-         Quero aprender a voar assim – disse Fernão, e um brilho estranho assomou aos seus olhos.

-         Diga-me o que tenho de fazer.

Chiang falou pausadamente, observando com atenção a jovem gaivota.

-         Para voares tão depressa quanto o pensamento para onde quer que seja – disse -, deves começar por tomar consciência de que já chegaste…

O truque, segundo Chiang, estava em Fernão deixar de se ver preso dentro de um corpo limitado, cujas asas abertas abrangiam um metro e cuja perícia poderia ser traçada num mapa.

O trunfo consistia em tomar consciência de que a sua verdadeira natureza vivia, tão perfeita como um número por escrever, em todo o lado e ao mesmo tempo através do espaço e do tempo.

Fernão empenhou-se a fundo, dia após dia, desde antes do Sol nascer até depois da meia noite.

Mas, apesar do seu esforço, não se conseguia deslocar um milímetro do local onde se encontrava.

-         Esquece a fé – dizia-lhe Chiang, sem cessar. Não precisaste de fé para voar. Isto é a mesma coisa.

Agora tenta outra vez…

Então, um dia em que Fernão estava junto à costa, de olhos fechados em concentração percebeu de repente o que Chiang tentara dizer-lhe.

-         Mas é verdade! Eu sou perfeito, sou uma gaivota sem limites!

Sentiu-se inebriado de alegria.

-         Muito bem! – disse Chiang, com voz triunfante.

Fernão abriu os olhos. Estava sozinho com o Mais Velho, numa costa completamente diferente: árvores à beira-mar, dois sóis gémeos girando sobre as suas cabeças.

-         Finalmente, conseguiste entender a ideia – disse Chiang -, mas tens de te aperfeiçoar mais com o controlo.

Fernão estava baralhado.

-         Onde estamos? Sem se impressionar com o que o rodeava, o Mais Velho não deu importância à resposta.

-         Estamos num planeta qualquer, com um céu verde e uma estrela dupla por sol.

Fernão soltou um grito de alegria, o primeiro som que emitia desde que abandonara a Terra.

-         RESULTOU!

-         Claro que resultou, Fernão – disse Chiang. Resulta sempre, quando se sabe o que se está a fazer. Agora, quanto à questão do controlo…

Quando regressou já era escuro. As outras gaivotas olharam para Fernão, com inveja nos seus olhos dourados, pois tinham-no visto desaparecer do local onde se mantinha havia tanto tempo.

Ouviu a felicitações durante menos de um minuto.

-         sou o mais novo aqui. Estou agora a começar. Sou eu que tenho de aprender com vocês.

-         Duvido – disse Henrique, ali próximo. – Tens menos receio de voar do que qualquer gaivota que conheci em dez mil anos.

O Bando ficou em silêncio e Fernão sentiu-se embaraçado.

-         Podemos começar a trabalhar com o tempo, se quiseres – disse Chiang, até conseguires voar através do passado e do futuro. E, então, estarás preparado para começar a voar alto e saber o significado das palavras bondade e amor.

Passou-se um mês, ou algo que se assemelhava a um mês, e Fernão aprendeu um ritmo impressionante. Sempre aprendera depressa as coisas vulgares, e, agora, como aluno especial do próprio Mais Velho, aprendia novas ideias como um computador de penas.

Mas chegou o dia em que Chiang desapareceu. Estivera a falar calmamente com todos, exortando-os a não deixarem de aprender nem de treinar, e a lutarem para melhor compreenderem o perfeito e invisível princípio de toda a vida.

Então, enquanto falava, as suas penas tornaram-se brilhantes, até que por fim nenhuma gaivota conseguia suportar o brilho.

-         Fernão – disse ele, e foram estas as últimas palavras que pronunciou, continua a trabalhar o amor.

Quando puderam ver de novo, Chiang já tinha desaparecido.

À medida que os dias corriam, Fernão dava consigo a pensar cada vez mais na Terra, de onde viera. Se lá tivesse sabido um décimo que fosse do que aprendera ali, como a vida teria tido outro significado! Deixou-se ficar ali na areia a pensar se haveria lá alguma gaivota a tentar ultrapassar os seus limites, a tentar perceber que o voo era mais que um meio para arrancar uma migalha de pão de um barco. Talvez até houvesse alguma banida por ter falado a verdade perante o Bando.

E quanto mais Fernão treinava a bondade, quanto mais se esforçava por conhecer a natureza do amor, mais ansiava por regressar à Terra. Apesar do seu passado solitário, Fernão Gaivota nascera para ser instrutor, e a sua forma de demonstrar amor era partilhar algo da verdade que ele próprio descobrira, como uma gaivota que pedisse uma oportunidade para alcançar essa verdade.

Henrique, agora adepto do voo velocidade pensamento e ocupado em ajudar os outros a aprender, tinha as suas dúvidas.

-                     Fernão, tu já foste banido uma vez. Que te leva a pensar que as gaivotas do teu tempo te poderiam dar agora ouvidos? Conheces o provérbio e é bem verdade: Vê mais longe a gaivota que voa mais alto. As gaivotas lá de onde vieste estão poisadas no chão, gritando e lutando umas com as outras. Encontram-se a mil e quinhentos quilómetros do paraíso, e, tu, ainda dizes que lhe queres mostrar o paraíso! Fernão, elas nem sequer conseguem enxergar as pontas das próprias asas! Fica aqui. Ajuda as gaivota aqui, aquelas que já estão preparadas para entenderem o que tens para lhes dizer. – Ficou calado durante um momento e, depois disse: - E se Chiang tivesse regressado aos seus velhos mundos? Onde estarias tu hoje? A última frase foi significativa, e Henrique tinha razão. Vê mais longe a gaivota que voa mais alto.

            E Fernão ficou, trabalhando com os novos pássaros que chegavam, que eram todos espertos e rápidos na aprendizagem. Mas o velho sentimento voltou, e ele não conseguiu deixar de pensar que poderia haver na Terra uma ou duas gaivotas que também quisessem aprender. Quão mais não teria ele aprendido se tivesse conhecido Chiang no dia em que for a banido!

-         Henrique, tenho de regressar – disse, por fim.

-         Os teus aprendizes vão muito bem. Poderão ajudar-te a ensinar os que chegarem.

Henrique suspirou,  mas não discutiu.

-         Vou sentir a tua falta, Fernão – foi tudo quanto disse.

-                     Henrique, que é isso? – exclamou Fernão, reprovador. – Não sejas tolo! Afinal, que tentamos nós aperfeiçoar todos os dias? Se a nossa amizade está dependente de coisas como o espaço e o tempo,  quando finalmente os ultrapassarmos, teremos destruído a nossa irmandade. Ultrapassando o espaço,  tudo o que nos resta é Aqui. Ultrapassando o tempo, tudo o que nos resta é Agora. E entre o Aqui e o agora, não achas que nos podemos encontrar uma ou duas vezes?

Henrique Gaivota sorriu, mesmo sem querer.

-                     És um pássaro louco – disse gentilmente. – Se existe alguém capaz de mostrar a um pássaro no chão como ver a mil e quinhentos quilómetros de distância, esse alguém é Fernão capelo Gaivota.

Olhou para a areia, e depois disse:

-         Adeus, Fernão, meu amigo

-         Adeus, Henrique. Voltaremos a encontrar-nos.

E dito isto, Fernão fixou no pensamento a imagem de enormes bandos de gaivotas na costa de outros tempos, e apercebeu-se com facilidade que não era só ossos e penas, mas uma ideia perfeita de liberdade e voos, sem limites de espécie alguma.

Francisco Coutinho Gaivota ainda era muito jovem, mas já sabia que nunca nenhum pássaro for a tratado pelo Bando com tanta severidade e com tanta injustiça.

«Não me interessa o que eles dizem», pensou, voava em direcção aos Penhascos longínquos.

«Voar é muito mais que bater asas de um lado para o outro! Um …um… mosquito faz isso!» Uma gracinha à frente do Mais Velho e serei banido. Estarão cegos? Não conseguirão ver? Não se aperceberão da glória que será quando aprendermos realmente a voar?

«Não me interessa o que eles pensam. Mostrar-lhes-ei o que é voar. Serei um banido, se é isso que eles querem. E farei que se arrependam…»

A voz surgiu de dentro da sua própria cabeça, e embora fosse muito suave, sobressaltou-o tanto que vacilou e quase tropeçou no ar.

Não sejas duro com eles Francisco Gaivota.

Ao expulsarem-te, as outras gaivotas só fizeram mal a si próprias, e um dia aperceber-se-ão disto, e um dia verão o que tu vês agora. Perdoa-lhes e ajuda-as a compreender.

A um centímetro da ponta da sua asa direita voava a gaivota branca mais brilhante que ele já vira, deslizando sem esforço, sem mover uma única pena, a uma velocidade que se aproximava da máxima de Francisco. O jovem pássaro ficou por momentos atordoado.

-         Que se passa? Estarei louco? Estarei morto? Que é isto?

Baixa e calma, a voz prosseguiu dentro dos seus pensamentos exigindo uma resposta.

Francisco Coutinho Gaivota, queres voar?

-         SIM, QUERO VOAR!

Francisco Coutinho Gaivota, a tua vontade de voar é tão grande que estás disposto a perdoar ao Bando e a aprender, e a voltar um dia para junto deles a fim de os ensinares?

Era impossível mentir àquele maravilhoso ser, por muito orgulhoso ou magoado que Francisco Gaivota sentisse.

-         Estou disposto – disse suavemente.

-         Então Francisco – disse-lhe a brilhante criatura, com a voz cheia de bondade -, comecemos com o voo planado.

 

TERCEIRA PARTE

 

Fernão voou em círculo, lentamente, sobre os Penhascos Longínquos, observando. Aquele Jovem Francisco era uma aprendiz persistente. Era forte e rápido no ar, mas, e isto era o mais importante, tinha uma vontade férrea de aprender.

Ali vinha ele, naquele momento, uma forma cinzenta esbatida, saindo de um mergulho, passando disparado pelo seu professor a duzentos e vinte quilómetros por hora. Abruptamente, tentou de novo, numa pirueta de dezasseis pontos, fazendo a contagem em voz alta.

-         … oito… nove… dez vês Fernão, estou a sair da velocidade do ar… onze… as … tuas… doze… mas não consigo… sem… que… aiii!

A atrapalhação de Francisco ainda foi maior devido à raiva de ter falhado. Caiu para trás, aos trambolhões, atirou-se selvaticamente para um parafuso invertido e recuperou, por fim, ofegante, trinta metros abaixo do nível do seu instrutor.

-         Estás a perder tempo comigo Fernão. Sou muito estúpido! Tento e volto a tentar mas nunca consigo.

Fernão Gaivota olhou para ele e assentiu

-                     De certeza que não consegues enquanto fizeres o arranque com tanta brusquidão. Francisco, só no arranque perdeste sessenta quilómetros. Tens de ser mais suave. Firme, mas suave percebes?

Desceu ao nível da jovem gaivota.

-         Vamos tentar de novo, em formação. E atenção à subida. O arranque é suave e fácil.

Passados três meses, Fernão já tinha mais seis estudantes, todos banidos, mas, no entanto, curiosos em relação àquela nova ideia de voar pelo prazer de voar.

Contudo, era-lhes mais fácil executar difíceis posições do que compreender a razão que havia por detrás.

-         Cada um de nós é na realidade uma ideia da Grande Gaivota, uma ideia ilimitada da liberdade – costuma dizer-lhes Fernão, à noite, na praia. – e o voo de precisão é um passo em direcção à nossa verdadeira natureza. Daí a razão de todo este treino de alta velocidade, baixa velocidade e acrobacias aéreas…

E os seus alunos adormeciam exaustos. Gostavam dos treinos porque eram rápidos e excitantes e porque lhes saciavam a fome de aprender que aumentava em cada lição. Mas nenhum deles, nem sequer Francisco Coutinho Gaivota, conseguia acreditar que o voo das ideias pudesse ser tão real como o voo de vento e penas.

-         Todo o vosso corpo, desde a ponta de uma asa, até à ponta de outra asa – costumava dizer Fernão -, não é mais do que o vosso próprio pensamento, numa forma que podem ver. Quebrem as correntes do pensamento e conseguirão quebrar as correntes do corpo…

Mas, por muito que falasse, soava como uma agradável ficção e eles precisavam dormir.

Um mês mais tarde, Fernão disse que tinha chegado a altura de regressarem ao Bando.

-         Ainda não estamos preparados – disse João Calvino Gaivota. – Não somos desejados! Somos banidos! Não podemos forçar-nos a ir onde não somos desejados, pois não?

-         Somos livres de irmos para onde desejarmos e de ser o que somos – respondeu Fernão, esquecendo-se da areia e voando para leste,  em direcção ao domínio do Bando.

A angústia reinou por momentos entre os alunos, pois uma das leis do Bando é que um banido nunca regresse, e a lei não for a quebrada nem uma única vez em dez mil anos. A lei dizia para ficarem; Fernão dizia para irem; e naquela já devia encontrar-se a mais de um quilómetro de distância. Se esperassem muito mais, ele chegaria sozinho junto de um Bando hostil.

-         Bem, se não fazemos parte do Bando, não temos que nos submeter à lei, pois não? – perguntou Francisco.

-         Além disso, se houver luta, seremos mais úteis do que aqui.

E assim, oito gaivotas voaram nessa manhã, em dupla formação de diamante, com as pontas das asas quase sobrepostas. Passaram pela praia do Conselho do Bando, a duzentos quilómetros por hora, com Fernão à cabeça, Francisco à direita e João Calvino à esquerda. Então, toda a formação guinou lentamente para a direita, como se fossem um único pássaro… planado… para… invertido… para… planado, com o vento a fustigá-los brutalmente.

Os gritos e guinchos constantes do dia a dia do Bando cessaram de repente como se a formação fosse uma espada gigante, e oito mil olhos de gaivotas observavam, sem pestanejar.

Um a um, os oito pássaros lançaram-se numa pirueta completa, descreveram uma curva perfeita e deixaram-se cair lentamente, até poisarem sobre a areia. Então, como se este tipo de coisas acontecesse todos os dias, Fernão Gaivota começou a criticar o voo.

-         Para começarem – disse, com um sorriso irónico – atrasaram-se todas um bocadinho na subida…

Foi como se um raio tivesse iluminado o Bando.

Aqueles pássaros eram banidos! E tinham regressado. E isso… isso não podia acontecer.

As previsões de Francisco em relação à luta, diluíram-se com a confusão entre o Bando.

-         Bem, claro que são banidos – disse uma das gaivotas mais jovens – mas, caramba, onde terão aprendido a voar assim?

A palavra do Mais Velho demorou quase uma hora a percorrer o Bando:

-         Ignorem-nos. A gaivota que fala com um banido, poderá considerar-se banida. Gaivota que olha para um banido infringe a Lei do Bando.

Costas e penas cinzentas viraram-se para Fernão a partir daquele momento, mas ele não mostrou ter reparado. Continuou com as sessões de treino directamente sobre a praia do Conselho, e pela primeira vez, pressionou os seus alunos até ao limite da sua capacidade.

-         Martinho Gaivota! – gritou através do céu. – Dizes que sabes voar a baixa velocidade. Não sabes nada até provares. VOA!

E assim Martinho Gaivota, sobressaltado por ser o alvo das atenções do instrutor, se surpreendeu a si próprio, tornando-se um especialista em baixas velocidades. Conseguia curvar as penas, elevando-se com a mais leve brisa, da areia às nuvens e das nuvens à areia, sem um único movimento de asa.

Do mesmo modo Rolando Gaivota sobrevoou a Grande Montanha, a sete mil e quinhentos metros, desceu do ar frio e gelado, maravilhado e feliz, determinado a voar ainda mais alto no dia seguinte.

Francisco Gaivota, que, mais do que ninguém, apreciava as acrobacias aéreas, conseguiu executar a sua pirueta vertical de dezasseis pontos, e no dia seguinte concluiu com um movimento circular, as penas brilhantes à luz do sol, na praia, onde mais um olho furtivo o observava.

Fernão encontrava-se sempre presente junto aos seus discípulos, demonstrando, sugerindo, pressionando, conduzindo. Voava com eles através da noite, das nuvens e da tempestade, só pelo prazer que isso lhe dava, enquanto o Bando se encolhia desconsolado, no solo.

Depois dos voos, os discípulos descansavam na areia, ouvindo atentamente o que Fernão dizia.

Este tinha algumas ideias malucas que eles não entendiam, mas também tinha outras muito boas que eles conseguiam aprender.

Gradualmente, à noite, começou a formar-se outro círculo à volta do círculo de estudantes: um grupo de gaivotas curiosas, que escutavam atentamente,  no escuro, durante horas a fio, sem desejarem ver ou ser vistas pelas outras e desaparecendo antes do amanhecer.

Foi um mês depois do regresso que a primeira gaivota do Bando atravessou a linha e pediu para a ensinarem a voar. Ao fazê-lo, Teseu sousa Gaivota, tornou-se um pássaro condenado e banido, e ao mesmo tempo, passou a ser o oitavo aluno de Fernão.

Na noite seguinte foi Virgílio Gaivota quem abandonou a Bando, cambaleando pela areia, arrastando a asa esquerda e caindo aos pés de Fernão.

-         Ajude-me – pediu-lhe baixinho, com voz de moribundo. – O meu maior desejo é voar…

-         Então, vem – disse Fernão. – Sobe comigo e começaremos.

-         Não entendeste. A minha asa. Não consigo movê-la.

-         Virgílio Gaivota, tu tens a liberdade de ser tu próprio, o teu verdadeiro eu, Aqui e Agora; nada se pode interpor no teu caminho. Essa é a Lei da Grande Gaivota, a Lei que É.

-         Queres dizer que posso voar?

-         Quero dizer que és livre.

Assim, tão simples e rapidamente Virgílio  Gaivota abriu as asas e, sem esforço, elevou-se na noite escura. O Bando foi despertado pelo seu grito, bem alto:

-         Posso voar! Ouçam! POSSO VOAR!

Quando o Sol nasceu havia quase mil pássaros à volta do círculo de alunos, olhando com curiosidade para Virgílio. Já não se preocupavam em não ser vistos, e ouviam com atenção, tentando entender Fernão Capelo.

Este falava de coisas muito simples: do direito que as gaivotas têm de voar, que a liberdade constitui a natureza essencial do seu ser, que deverão ser afastados todos os obstáculos que se levantem contra a liberdade, sejam por superstição, ritual ou limitação.

-         afastar – disse uma voz saída da multidão – mesmo que isso seja contra a Lei do Bando?

-         A única lei verdadeira é aquela que conduz à liberdade – respondeu Fernão. - Não existe outra.

-         Queres que voemos como tu voas? – perguntou outra vez. – Tu és especial, dotado e divino. És superior aos outros pássaros.

-         Olhem para o Francisco! Para Teseu! Para Ronaldo! Também serão especiais, dotados e divinos? Não são mais do que tu, não são mais do que eu. A única diferença é que eles só agora começaram a entender o que realmente são e a pôr em prática esse conhecimento.

Os seus alunos, exceptuando Francisco moveram-se, pouco à vontade. Ainda não se tinham apercebido de que era isso o que lhes estava a acontecer.

A multidão crescia de dia para dia; vinham fazer perguntas, idolatrá-los ou injuriá-los.

-         Dizem do Bando, que se não és filho da própria Grande Gaivota, então estás mil anos à frente do teu tempo – disse Francisco a Fernão, uma manhã, após o treino de velocidade avançada. Fernão suspirou. «É este o preço de se ser incompreendido», pensou. «Ou nos chamam Diabo ou nos chamam Deus.»

-         Que pensas tu, Francisco? Estamos à frente do nosso tempo?

Fez-se um longo silêncio.

-         Bem, esta maneira de voar sempre esteve ao alcance de quem a quisesse descobrir. Não tem nada a ver com o tempo. Talvez estejamos à frente da moda. À frente da forma como a maior parte das gaivotas voam.

-         Isso já é alguma coisa – disse Fernão, virando o corpo de forma a voar ao contrário. – É bem melhor do que estar avançado em relação ao nosso tempo.

Aconteceu uma semana depois. Francisco demonstrava os elementos do voo a alta velocidade a um grupo de novos alunos. Acabava de concluir um mergulho de dois mil metros, deixando atrás de si um longo rasto cinzento sobre a praia, quando um jovem pássaro, que fazia o seu primeiro voo, cruzou directamente o seu caminho, chamando pela mãe. Dispondo unicamente de um décimo de segundo para se desviar do novato, Francisco Coutinho Gaivota virou com força para a esquerda, a cerca de trezentos quilómetros por hora, contra um rochedo de sólido granito.

Para ele, o rochedo foi como uma porta dura e gigantesca para um outro mundo.

Primeiro sentiu uma onda de medo e choque, quando a escuridão o envolveu. Depois, sentiu-se flutuar num céu estranho, esquecendo, recordando, esquecendo: com medo, dor e tristeza, uma imensa tristeza.

A voz chegou até ele como no primeiro dia em que conhecera Fernão Capelo Gaivota.

O truque, Fernão, consiste em tentar ultrapassar as nossas limitações, com calma e paciência. Voar através das rochas já faz parte de uma fase mais avançada.

-         Fernão!

-         Também conhecido pelo Filho da Grande Gaivota! – disse o instrutor.

-         Que fazes aqui? O rochedo! Então… eu não… não morri?

-         Oh, vamos lá Francisco. Pensa. Se estás a falar comigo, então, é porque não morreste, não é?

O que fizeste foi modificar abruptamente o teu nível de consciência, que, a propósito, até é bem mais evoluído que o que deixaste. Podes permanecer aqui e aprender neste nível, ou voltar e continuar a trabalhar com o Bando. Os mais velhos estavam ansiosos por um acidente, mas estão espantados pela forma como correram as coisas.

-         Claro que quero voltar para junto do Bando.

Mal comecei a trabalhar com o novo grupo.

-         Muito bem, Francisco. Lembras-te do que dissemos acerca do nosso corpo não ser mais do que o próprio pensamento…?

Francisco abanou a cabeça, e esticou as asas, na base do rochedo, onde se encontrava todo o Bando reunido. Ergueram-se num enorme clamor de guinchos quando o viram mover-se.

-         Está vivo! Aquele que tinha morrido está vivo!

-         Tocou-o com a ponta de uma asa! Trouxe-o de novo à vida. O Filho da Grande Gaivota!

-         Não! Ele nega-o. Ele é um demónio! DEMÓNIO! Veio para semear a discórdia entre o Bando.

Havia quatro mil gaivotas na multidão, assustadas com o que estava a acontecer e o grito  DEMÓNIO passou por elas como o vento de uma tempestade marítima. De olhos brilhantes, bicos afiados, uniram-se para destruir.

-         Sentias-te melhor se partíssemos, Francisco? – perguntou Fernão.

-         Não me importaria se o fizéssemos.

Instantaneamente, afastaram-se ambos oitocentos metros, e os bicos agressivos da multidão fecharam-se no vazio.

-         Por que será – interrogou-se Fernão – que a coisa mais difícil do mundo é convencer um pássaro de que é livre, e de que poderá  prová-lo a si próprio se treinar um pouco? Por que será tão difícil?

Francisco ainda pestanejava devido à mudança de cenário.

-         Que fizeste? Como viemos aqui parar?

-         Disseste que querias sair do meio da multidão, não disseste?

-         Sim. Mas como conseguiste…?

-         Como tudo o resto, Francisco. Com treino.

De manhã já o Bando se encontrava mais calmo, mas o mesmo não se passava com Francisco.

-         Fernão, lembras-te do que disseste há tempos sobre amar o Bando o suficiente para regressar e ajudá-lo a aprender?

-         Claro.

-         Não entendo como consegues amar um Bando de pássaros que tentou matar-te.

-         Oh, Francisco, não é isso que se ama. Claro que não se ama o ódio e o mal. É preciso persistir até ver a verdadeira Gaivota, aquilo que há de bom em cada uma delas, e ajudá-las a ver isso também. Quando se consegue entender, até é engraçado.

-         Lembro-me de um jovem pássaro impetuoso, por exemplo, o Francisco Coutinho Gaivota. acabava de ser banido, estava pronto a lutar com o Bando até à morte, e começou por construir o seu inferno. E aqui está ele hoje a construir o seu paraíso e a guiar o Bando nessa direcção.

Francisco voltou-se para o seu instrutor, com um brilho de medo nos olhos.

-         Eu, guiar? Que queres dizer com isso? Tu é que és instrutor. Não podes abandonar-nos.

-         Não posso? Não te lembras de que pode haver outros Bandos, outros Franciscos que necessitem de um instrutor mais do que este, que já se encontra no caminho da luz?

-         Eu? Fernão, eu não passo de uma gaivota vulgar, e tu és…

-         … O único Filho da Grande Gaivota, não é? – Fernão suspirou e olhou para o mar. Precisas de continuar a descobrir-te, um pouco mais cada dia, o verdadeiro e ilimitado Francisco Gaivota. Precisas de o compreender e de o treinar.

Passados momentos, o corpo de Fernão estremeceu no ar, brilhando, e começou a ficar transparente.

-         Não deixes que eles espalhem boatos a meu respeito, nem que façam de mim um Deus, está bem, Francisco? Eu sou uma gaivota.

Gosto de voar, talvez…

-         FERNÃO?

-         Pobre Francisco. Não acredites no que dizem os teus olhos. O que te mostram é limitação.

Olha com compreensão, descobre o que já sabes e verás como voar.

O brilho extinguiu-se. Fernão Gaivota desapareceu no ar.

Passado pouco tempo, Francisco Gaivota arrastou-se para o céu e encontrou-se face a face com um novo grupo de estudantes, ávidos da sua primeira lição.

-         Para começar – disse, pesadamente -, vocês têm de compreender que uma gaivota é uma ideia ilimitada de liberdade, uma imagem da Grande Gaivota, e todo o vosso corpo, desde a ponta de uma asa até à ponta da outra, não é mais do que o vosso próprio pensamento.

As jovens gaivotas olharam-no interrogativamente.

«Eh lá», pensaram, «isto não parece uma regra para as piruetas!»

Francisco suspirou e continuou:

-         Hum… muito bem – disse olhando-os com ar crítico. – Comecemos pelo voo planado.

E, dizendo isto, compreendeu de imediato que o seu amigo não for a afinal, mais divino do que ele próprio era.

«Não há limites, Fernão?», pensou. «Bem, não está muito longe o tempo em que aparecerei na tua praia e te ensinarei uma ou duas coisas acerca do voo.»

E embora tentasse mostrar-se severo com os seus discípulos, Francisco Gaivota viu-os, subitamente tal como eles eram, e mais do que gostar, amou o que viu. «Não há limites, Fernão?», pensou, e sorriu. A sua corrida para a aprendizagem acabava de começar.

 

FIM!